18 Junho 2018
No nevoeiro, os corpos são recolhidos no mar. Na noite, são procurados aqueles que tentam "dar el salto", ultrapassando as barreiras anti-invasão marroquinos e espanholas, para finalmente emergir na Europa, uma terra prometida mais madrasta que mãe.
A reportagem é de Brunella Giovara, publicada por La Repubblica, 16 -06-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Poucos conseguem, são levados imediatamente para o hospital e logo depois para um centro de detenção, prontos para serem expulsos para o Níger, Mali, ou Darfur, porque toda a África subsaariana está pronta para tomar de assalto à Espanha, estamos apenas no começo. Isso acontece no Marrocos, nas duas cidades enclave espanholas, duas fortalezas sobre o mar: Ceuta e Melilla, uma olha para Gibraltar, a outra é 382 km a leste, perto de Orã.
Mas em Ceuta talvez aconteça o pior, e as pessoas estão quase acostumadas a ver corpos de migrantes flutuando, "eles se afogam porque são negros", e los negros - falam aqui na Andaluzia - não sabem nadar. Na semana passada "foram oito que tentaram, um morreu, os outros conseguiram", conta Juan P., uma pessoa muito conhecida na cidade para dar o seu nome verdadeiro, mas explica "a vergonha que hoje sentimos, ao ver tantas pessoas ao nosso redor morrendo".
Ninguém sabe ao certo o que vai acontecer e o que fazer, exceto o ministro do Interior espanhol, Fernando Grande-Marlaska, que fez um anúncio histórico na quinta-feira passada: "Farei todo o possível para que sejam eliminadas ‘las concertinas’ das barreiras”. E na palavra concertinas - uma palavra de som leve e infantil – concentraram-se as ansiedades de todos. Tradução literal: acordeões. Sentido real, estruturas tubulares de aço, rígidas, armadas com lâminas afiadas, praticamente intransponíveis, fixadas no topo das barreiras; se alguém conseguir mesmo superar todos os obstáculos, quando chega diante delas, tem que ter muita coragem ou nada a perder. A menos que seja capaz de voar por mais de 6 metros, ou usar uma armadura de aço, em uma cidade que vive como na Idade Média, com fossos, torres de avistamento, patrulhas, e até mesmo civis que têm muitos cães, mais pit bulls que cãezinhos de companhia, o inimigo causa medo e está a poucos metros daqueles que apenas gostariam de desfrutar dos turistas, benditos sejam, cínicos ou ignorantes do que acontece aqui.
O ministro quer remover as concertinas porque são verdadeiras armas ofensivas, e no novo curso do governo Sanchez cabe uma medida como esta (e cabe também o anúncio do retorno do serviço de saúde universal, ou seja, público e gratuito para todos, incluindo os migrantes). Na semana passada, dois tentaram o salto e também tiveram sucesso, as sirenes dispararam e os holofotes iluminaram a cena: um tinha quebrado a tíbia e a fíbula, mas também estava cheio de cortes que respingavam sangue. O outro tinha os tendões das mãos cortados, ou seja, mãos que seriam inúteis, talvez para sempre.
Não são suficientes os panos com os quais se cobrem para subir, ou as escadas feitas de madeiras e galhos, assim como faziam os Bretões na muralha de Adriano. Esses são os efeitos das concertinas, que agora a Espanha está tentando eliminar de sua história. Irá substituí-las por outra coisa, mas se é verdade que vai tirá-las, é certo que nos próximos dias milhares de "negros" irão de assalto às barreiras, como aconteceu no verão passado: mil conseguiram entrar apenas esgueirando-se em uma das aberturas de vigilância e tomando de surpresa a polícia, que depois os expulsou e acabou por ai, só o tempo suficiente para beijar a terra e tirar uma foto de lembrança.
Agora, todo mundo está histericamente preocupado, começando pelos sindicatos de polícia, que estão pedindo mais câmeras, infravermelhos e tropas, em um lugar "já altamente militarizado, postos de controle e coberto de quartéis e arame farpado, não é possível viver assim, nos sentimos sob cerco", conta Juan. E também muitas bandeiras da Espanha nas janelas, em desafio àquelas vermelhas do Marrocos, dois reinos que se enfrentam e não conseguem fazer nada de sensato para a massa de bárbaros que pressiona suas portas de aço. Todos temem o "effecto llamada", o apelo que o fim das lâminas cortantes terá sobre os negros que vivem na floresta lá fora, como animais selvagens. Abdelilah, cidadão espanhol de origem marroquina: "Todos os governos africanos são corruptos e roubam. Se alguém tem o que comer e onde dormir, fica em casa, não é?". "É um fenômeno que não pode ser interrompido, eles são pobres, prontos para fazer qualquer coisa para passar", diz Juan.
Ao redor de Tânger há acampamentos de milhares de pessoas, que esperam o momento certo, por mar ou por terra. No bairro de Boukhalef também. E perto de Melilla, 3 mil pessoas vivem ou sobrevivem na serra de Nador, onde de tempos em tempos a polícia marroquina faz incursões e destrói os barracos na floresta.
Em Benzu, na outra ponta de Ceuta, o mar é perfumado, mas não convidativo, a não ser para os turistas do norte da Europa que não temem o banho na mesma água que acaba de lavar alguns cadáveres. A montanha logo acima é chamada de "La mujer morta", abaixo está o cemitério islâmico e, por fim, as fileiras de barreiras cintilantes, afiadas como os cacos de vidro, menos poéticas.
Na parte do Marrocos, guaritas de sentinelas pintadas de cor-de-rosa e com as tendas verdes e azuis do exército. "Os marroquinos são muito duros com os migrantes: Primeiro atiram, enquanto nós, espanhóis, não fazemos isso. Depois usam chicotes, pegam aqueles homens e os carregam a pontapés". No ponto em que a fronteira entra no mar por vários metros, é o ponto onde muitos tentam a passagem. A torre da Guarda Civil vasculha o mar de sua competência, do outro lado uma praia deserta, casas coloridas, roupas lavadas sacudidas pelo vento, mulheres com o abaya longo até os pés.
Inclusive na última sexta-feira havia um vento leste, aqui no Estreito, então muito nevoeiro e naquela serração, em apenas 11 horas, o Resgate Marítimo retirou 471 pessoas vivas e 4 mortas, distribuídas em 57 "pateras", velhos botes ótimos para afundar. E no mesmo período no mar de Alboran, outras patrulhas e um helicóptero militar resgataram 211 pessoas, entre as quais dois bebês. No total, 682 pessoas, mais que aquelas do navio Aquarius, agora pronto para atracar em Valência.
Mas ontem em Ceuta todos estavam felizes, apesar dos navios vermelhos do Salvamiento estarem em busca de vivos e mortos. Cidade cheia, pleno sol, celebrava-se a Nossa Senhora da África, uma antiga estátua doada pelos reis de Portugal à cidade-fortaleza reconquistada do islã. Ela protege essa Frontera del Sur, mais que a África, com certo ar carrancudo e um cadáver deitado sobre os joelhos.
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Migrantes: em Ceuta, a outra fronteira entre a Europa e a África. "Chega de lâminas de aço nas barreiras" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU